O reconhecimento de paternidade, também chamado de perfilhação, é um ato de extrema relevância no ordenamento jurídico brasileiro, previsto no artigo 1.609 do Código Civil. Ele pode ser realizado de forma espontânea, por meio de escritura pública em cartório, sendo considerado um meio rápido e eficaz para estabelecer a filiação. Este ato gera efeitos imediatos, como direitos patrimoniais, sucessórios e relacionais entre pai e filho. Contudo, quando examinamos essa situação sob a ótica da interação entre diferentes sistemas jurídicos, surgem complexidades adicionais, especialmente no âmbito da nacionalidade portuguesa.
O Problema Jurídico: A Filiação Reconhecida na Maioridade
A Lei da Nacionalidade Portuguesa, em sua redação consolidada até as alterações promovidas em 2024, estabelecia que a nacionalidade com base na filiação dependia de esta ser estabelecida durante a menoridade do requerente. Reconhecimentos realizados na maioridade, mesmo válidos no país de origem, como o Brasil, não eram considerados suficientes para produzir efeitos jurídicos relativos à nacionalidade portuguesa.
Com a mudança legislativa em 2024, passou a ser permitido o reconhecimento de filiação realizado na maioridade para fins de nacionalidade, mas com uma exigência adicional: que o reconhecimento fosse formalizado por meio de decisão judicial. Assim, o ordenamento português criou uma barreira processual, buscando maior segurança jurídica em casos que envolvam filiação na maioridade. Antes dessa alteração, pessoas perfilhadas na maioridade enfrentavam barreiras intransponíveis para obter a nacionalidade portuguesa, mesmo que a filiação fosse consensual e reconhecida por vias legais no Brasil. Agora, com a exigência de decisão judicial, abre-se uma nova possibilidade, mas ela demanda o cumprimento de formalidades específicas.
A Solução: Reconhecimento Judicial no Brasil
O reconhecimento de paternidade realizado em cartório no Brasil, embora plenamente válido e eficaz em âmbito nacional, não atende diretamente às exigências formais do ordenamento português. Para que produza efeitos na esfera internacional, especificamente para fins de nacionalidade, surge a necessidade de uma solução complementar: uma decisão judicial brasileira que ratifique o ato extrajudicial e lhe confira os contornos formais exigidos pelo direito português.
Essa solução passa pelo ajuizamento de uma ação judicial no Brasil, na qual se busca uma decisão que confirme a filiação estabelecida por escritura pública. Nesse contexto, entra em cena o conceito processual de interesse de agir, que é um pressuposto fundamental para a propositura de qualquer ação judicial, conforme disposto no artigo 17 do Código de Processo Civil brasileiro. Esse interesse é demonstrado pela necessidade de intervenção judicial, uma vez que não há outro meio eficaz para garantir que o reconhecimento produza efeitos no exterior. Além disso, a adequação do meio escolhido – a ação judicial – está claramente demonstrada, pois a decisão judicial atende às exigências formais impostas pela legislação portuguesa.
No caso específico, a concordância das partes – pai e filho – com o pedido judicial reforça o caráter colaborativo da demanda, mas não elimina a necessidade da intervenção jurisdicional. A decisão judicial não apenas ratifica a situação já consolidada no Brasil, mas confere a formalidade indispensável para que o reconhecimento seja reconhecido internacionalmente. Além disso, essa solução está alinhada com os princípios de cooperação jurídica internacional e respeita as diretrizes do ordenamento brasileiro, que admite a utilização do Judiciário para suprir exigências formais de outros países.
A Importância da Decisão Judicial
A propositura de uma ação judicial para confirmar a perfilhação realizada extrajudicialmente não é apenas um mecanismo para atender às exigências legais estrangeiras, mas também uma garantia de segurança jurídica para todas as partes envolvidas. A decisão judicial brasileira, ao ratificar a filiação, assegura que ela terá o reconhecimento pleno no ordenamento português, possibilitando o exercício de direitos relacionados à nacionalidade. No entanto, para que essa decisão judicial produza efeitos em Portugal, ela deve passar por um procedimento de revisão e confirmação perante o Tribunal da Relação competente, conhecido como homologação de sentença estrangeira.
O processo de homologação de sentença estrangeira é regulado pelos artigos 978.º a 985.º do Código de Processo Civil português e constitui uma etapa obrigatória para que decisões judiciais proferidas no exterior sejam reconhecidas e tenham eficácia em Portugal. Este procedimento não analisa o mérito da decisão estrangeira, mas verifica sua conformidade com as normas processuais portuguesas e os princípios fundamentais da ordem pública. Somente após essa homologação é que a sentença brasileira será válida no ordenamento jurídico português, permitindo que o reconhecimento de filiação seja registrado nas conservatórias de registro civil e utilizado em processos administrativos, como o de atribuição de nacionalidade.
A homologação é, portanto, uma garantia adicional de segurança jurídica, assegurando que os direitos reconhecidos no Brasil sejam efetivamente respeitados em Portugal. Além disso, esse procedimento reflete a cooperação internacional entre os sistemas jurídicos, promovendo a harmonização de legislações distintas e o respeito mútuo entre as jurisdições.
Por outro lado, esse procedimento reflete um exemplo prático de como o direito processual brasileiro pode ser utilizado estrategicamente para resolver questões transnacionais. Ele demonstra a importância do Judiciário como um instrumento de adaptação e integração entre diferentes sistemas jurídicos, promovendo não apenas a efetividade de direitos individuais, mas também a harmonização entre legislações distintas.
Conclusão
Com a mudança legislativa em Portugal, pessoas perfilhadas na maioridade passaram a ter a possibilidade de pleitear a nacionalidade portuguesa, desde que atendam à exigência de reconhecimento judicial. Para os brasileiros nessa situação, o caminho está na busca por uma decisão judicial que ratifique a perfilhação extrajudicial e atenda às exigências formais do ordenamento jurídico português. Essa ação, além de necessária, representa uma solução eficaz e juridicamente sólida para garantir que direitos reconhecidos no Brasil possam produzir seus efeitos em contexto internacional. O caso ilustra como o direito processual pode responder de maneira técnica e estratégica às demandas de um mundo interconectado, assegurando o pleno exercício de direitos em múltiplas jurisdições.